postado em 04/02/2023 06:00
(crédito: Reprodução/Fantástico/TV Globo)
BRUNA DA SILVA FERREIRA – Licenciada em letras e mestre em literatura (UnB), é servidora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Eu não sei você, mas nunca tive a honra de ser convidada a conhecer o terceiro andar do Palácio do Planalto. Mesmo se tivesse, não saberia identificar, no fino desenho talhado na madeira, que o relógio no corredor se tratava de uma rara peça de relojoaria de Martinot, com traçado de André-Charles Boulle. Se alguma pessoa mais versada nos sinuosos caminhos da mobília francesa me contasse tais detalhes, acrescentando, ainda, que se tratava de um presente de Luís XIV, rei da França, a D. João VI, rei de Portugal, que o trouxe para o Brasil com vinda da corte portuguesa, em 1808, minha resposta não poderia ser outra: e o que é que um símbolo do pacto colonial entre duas monarquias escravocratas faz adornando a capital da República?
Que nenhum curador de arte do Palácio do Planalto jamais tenha feito essa pergunta é um sintoma do traço que permanece entre as transições do poder pelas quais passou nosso país em mais de 500 anos de história: nunca houve ruptura da hegemonia branca nos espaços de poder e, por consequência, nos espaços que definem o que é arte, o que é cultura, o que é patrimônio. Antes que me acusem de fazer apologia da destruição de obras de valor “inestimável”: não faço, absolutamente. Quero, apenas, chamar a atenção para a disputa de narrativa acerca dos símbolos de poder em uma democracia. O que se propõe é a democratização do acesso e da oportunidade de fruição, pela sociedade, da arte produzida e preservada historicamente pelas elites econômicas.
Há uma longa distância entre celebrar e apreciar o valor da história e da técnica de uma obra de arte de 200 anos e elegê-la como mártir de um atentado violento à democracia brasileira, como têm feito alguns discursos que em muito se assemelham ao que poderiam defender, sem pudor, os monarquistas que ocuparam a Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Rio de Janeiro, nos últimos anos.
A leitura crítica do patrimônio cultural de origem colonial é um dos desafios impostos à política de educação patrimonial a ser fortalecida pelo Estado brasileiro a partir dos acontecimentos em 8 de janeiro. Quantas obras de artistas negros foram selecionadas pela curadoria de arte dos Palácios dos Três Poderes? Por que não convidar os artistas negros a representar os próprios sonhos e aspirações?
Dos escombros de mais uma grave afronta à democracia surge a oportunidade de avançar no compromisso simbólico firmado na passagem da faixa ao novo presidente, que a recebeu do povo brasileiro. O povo brasileiro quer subir a rampa, quer entrar no palácio e, ao entrar, quer se deparar também com representações de suas celebrações e corpos que sejam mais do que a interpretação erudita de uma beleza e de uma alegria exóticas, essencialistas.
Di Cavalcanti começou a pintar aos 11 anos — a quantos jovens brasileiros é dada a mesma oportunidade? Quantos poderão acompanhar e aprender com o trabalho de restauro das obras destruídas? Quantos deles não serão brancos? Considerando a relevância do movimento modernista na renovação das diversas expressões artísticas brasileiras, que crítica se faz à exclusão de artistas negros de um movimento de vanguarda que se propôs construir uma nova identidade nacional?
São perguntas incômodas para um momento de crise, mas que devem ser feitas, sob o risco de que a restauração do patrimônio cultural destruído por atos de terrorismo seja também a restauração de uma narrativa conhecida sobre o valor de uma arte excludente, elitista, cuja apreciação e fruição é para poucos privilegiados. É também nesse vácuo de participação social e de identificação entre os símbolos do poder e a vida vivida pela população, que o fascismo sabe tão bem manipular, que cresce o ódio que culminou nas cenas que nos abateram naquele triste domingo.
O patrimônio cultural acautelado pelo Iphan é de todos, na letra na lei, mas é preciso, ainda, que seja para todos, não como imposição estética das elites ao povo que se pretende “educar”, mas como construção coletiva, que não apague a memória dos vencidos e dos explorados em nome da conservação de bens “inestimáveis”.
A vinda da família real portuguesa para o Brasil, além de trazer nos cofres mobília francesa, triplicou, em 13 anos, o número de africanos e afrodescendentes escravizados no país. Diante da necessidade de elencar prioridades de gastos do governo federal, talvez a restauração do relógio de Martinot possa aguardar o socorro ao Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, que, não por acaso, passou os últimos quatro anos — também — sob ataque de bolsonaristas extremistas e raivosos.