Professor afirma que desigualdades sociais estão na base da enorme polarização política na região e alimentam o populismo. Forte presença da China nas principais economias amplia relações turbulentas com os EUA e a Europa
Corresponde em Lisboa — A forte presença da China na América Latina exigirá um esforço redobrado dos Estados Unidos e da Europa para manter a região fechada com a visão do Ocidente. Segundo o reitor da IE University, Manuel Muñiz, que foi vice-ministro do Exterior da Espanha, o fato de a maior parte dos países latinos se recusarem a endossar sanções à Rússia, após a invasão à Ucrânia, indica que norte-americanos e europeus não estão conseguindo estreitar os laços com essas nações.
Ele acredita que, como maior economia latina, o Brasil terá papel fundamental na integração regional. A América Latina, porém, terá de se reencontrar com o crescimento econômico para distribuir renda. Na avaliação de Muñiz, as enormes desigualdades sociais são fontes constantes de tensão na região, que teve, nos cinco anos anteriores à pandemia do novo coronavírus, o pior desempenho da atividade em sete décadas. E, quando estava começando a se recuperar, foi atropelada pela grave crise sanitária. “Essa grande desigualdade social alimenta a polarização política e incentiva o populismo”, assinala o professor de política, economia e relações internacionais.
Para o decano, com a recente guinada de parte da América Latina para a esquerda, em especial no Brasil e no Chile, essa corrente política não poderá falhar na promessa de melhoria de vida da população, sob o risco de causar mais turbulências. Ele também chama a atenção para que o Estado de direito prevaleça, assim como a segurança política e jurídica, para que os investidores se sintam confortáveis para destinar recursos que os países tanto necessitam, sobretudo, para melhorar a infraestrutura. A seguir, trechos da entrevista que Muñiz concedeu ao Correio, a propósito da Cúpula Ibero-americana que aconteceu neste fim de semana na República Dominicana.
Como os países chegaram à Cúpula Ibero-americana depois de dois anos de pandemia?
Com grandes mudanças desde a última vez que se encontraram. No plano econômico: os últimos anos foram, de modo geral, difíceis para a região, com crescimento lento. Politicamente, houve terremotos que apontam para o desvio de vários países para a esquerda. Isso é particularmente verdade no Chile e no Brasil. E, por último, no plano geopolítico, o encontro ocorre num claro agravamento das relações entre os Estados Unidos, a Europa e a China. Dada a centralidade da China na economia regional, o aumento das tensões globais será um desafio para os países latino-americanos navegarem.
Quais são, hoje, os principais desafios da região?
Como há muitas décadas, o principal desafio é proporcionar um crescimento equitativo. Os cinco anos anteriores à covid foram os piores em termos de desempenho econômico para a região das últimas sete décadas. E o impacto da pandemia foi muito significativo. A América Latina viu uma contração da atividade econômica em uma escala não vista em 100 anos. Ou seja, a covid atingiu uma economia que ainda estava em recuperação, enfrentando a quebra de um ciclo de commodities e lutando para melhorar a produtividade e ampliar a renda
Temos visto tanto governos de extrema-direita quanto de extrema-esquerda tomando o poder em vários países. Com avalia esse movimento? Quais suas consequências?
Acredito que o movimento à esquerda está enraizado na necessidade de construir sociedades mais equitativas. A região tem tido um desempenho misto, para dizer o mínimo, nesta frente. E isso alimentou claramente a polarização política. A grande questão é se essas novas lideranças de esquerda serão capazes de entregar resultados.
A América Latina sempre foi o paraíso dos populistas. Por que não consegue se livrar dessa praga?
Na minha opinião, as causas fundamentais do populismo latino-americano são a desigualdade social e a falta de uma classe média consolidada e segura. A falta de um instrumento eficiente para a distribuição de renda produz um enfraquecimento do centro do espectro político.
Do ponto de vista econômico, a América Latina tem se mostrado um fracasso. Cresce menos que a média das demais regiões. Por quê?
São muitas as razões para esta falta de crescimento. O desenvolvimento do capital humano é certamente um deles. A falta de infraestruturas em grandes partes da região e o nível modesto de integração econômica regional são outros fatores que contribuem para essa realidade. Mais: a instabilidade política, que produz, em alguns casos, a insegurança jurídica é, particularmente, crítica em alguns casos e desencoraja o investimento estrangeiro.
É possível mudar esse quadro desalentador? Como?
Sim, por meio de uma política clara e sustentada de combate às desigualdades sociais, investindo na educação e na infraestrutura, promovendo a integração regional e apoiando as instituições democráticas e o Estado de direito. São pontos que fazem uma imensa diferença.
Como os investidores veem a região? Há razão para tanta desconfiança? Por quê?
As questões relativas ao Estado de direito são generalizadas na América Latina. No caso dos investimentos originários da Espanha, houve casos de instrumentalização política. Isso é emblemático no México. É raro passar uma semana sem que a alta liderança do país ataque as empresas espanholas ou as suas atividades no país. Isso desencoraja o investimento internacional.
O que os investidores mais temem na região? A erosão do Estado democrático de direito e a exposição ao risco político. É possível pensar em uma América Latina mais próspera? Por quê?
Absolutamente, é possível. Mas é preciso um certo tipo de liderança política sustentada. A região tem recursos naturais e humanos extraordinários. Na minha opinião, não há nenhuma razão estrutural para que a América Latina não atinja níveis de rendimento per capital semelhantes aos que vemos na Europa ou nas economias do Leste Asiático.
Por que os Estados Unidos se mantêm de costas para a América Latina?
Esta é uma questão muito relevante. Os EUA não investiram tempo nem recursos suficientes na América Latina. Descobriu, agora, que a região não está disposta a, por exemplo, impor sanções à Rússia, apesar da pressão norte-americana e da Europa. A China, aliada da Rússia, é o principal parceiro comercial da maioria dos países latino-americanos e um dos maiores credores da região. E até mesmo um dos maiores investidores, inclusive no Brasil, diga-se de passagem. Tanto os EUA quanto a Europa precisam estar mais presentes na região, diplomática e economicamente. Se quisermos que a América Latina continue a fazer parte do Ocidente, temos de nos comprometer com ela.
Que papel tem o Brasil na integração regional?
Desempenha um papel fundamental. A integração regional simplesmente não ocorrerá a sério se o Brasil não fizer parte dela.